segunda-feira, 17 de maio de 2010

Maus, Art Spiegelman

por Fernanda Friedrich

"Estou pensando no meu livro... É pretensioso da minha parte.

Quer dizer, não consigo nem entender minha relação

com meu pai...Como eu vou entender Auschwitz?...

Ou o Holocausto?... É muito esquisito tentar reconstruir

uma realidade pior do que os meus sonhos mais

pavorosos. E ainda por cima em quadrinhos!"


Maus é, antes de tudo, um desafio. Não tanto pela dificuldade de leitura (uma vez que os nomes poloneses e alemães são assimilados, a leitura é bastante agradável se não levarmos em conta os fatos relatados durante a história), mas pela pretensão do autor em tentar narrar o inenarrável, como julgou uma vez Walter Benjamin: a experiência do Holocausto. Um desafio belamente superado, diga-se de passagem: Art Spiegelman ganha o Prêmio Especial Pulitzer um ano após a publicação do segundo volume de Maus, em 1992 e sua obra continua a suscitar reflexões, seja entre os entendidos de literatura, de história ou de artes, sendo um sucesso de crítica.

As primeiras publicações de Maus (que significa rato, em alemão) tomaram corpo na revista RAW entre 1986 e 1991, revista de quadrinhos e artes gráficas de vanguarda co-fundada e editada por Art Spiegelman. Maus narra a experiência vivida pelo pai de Art, Vladek Spiegelman, um judeu polonês, durante a Segunda Guerra Mundial. O casamento com Anja, filha de uma família judia rica, os primeiros contatos com o nazismo, o início da guerra, a separação, morte e desaparecimento de familiares, as dificuldades vividas em Auschwitz e o reencontro com Anja no campo de concentração, o fim da guerra e as conseqüências dessa experiência na vida dos judeus, tudo isso é transmitido para Art através de entrevistas ocorridas durante visitas à casa de seu pai com o objetivo de publicar um livro. A seguinte afirmação é um clichê, mas é uma história realmente emocionante, especialmente por ter sido transmitida em detalhes por alguém que foi vítima e herói, vivendo toda a experiência catastrófica do Holocausto de perto.

A maneira que Spiegelman retrata os personagens é bastante interessante: estadunidenses são cães, poloneses são porcos, alemães são gatos e judeus são ratos, fazendo uma referência às propagandas nazistas da época. Esse recurso fez com que a publicação da grafic novel na Polônia fosse adiada algumas vezes; é interessante, porém, notar que nas cenas em que judeus se disfarçam de poloneses ou em que o próprio Art Spiegelman aparece durante o tratamento com seu psicanalista (judeu sobrevivente ao holocausto) todos estão de máscaras, ou indicando sua origem, ou mascarando-a.

Além desses detalhes, são palpáveis os problemas de Art para conviver com seu pai, um judeu racista e avaro, com dificuldades extremas para se relacionar com quem quer que seja. Alguns anos depois de terminar a guerra, Vladek e Anja foram pais novamente (seu primeiro filho, Richieu, morreu durante a guerra): Art nasceu e, dez anos depois, Anja se suicidou. Vladek se casou novamente com uma sobrevivente do Holocausto chamada Mala, com a qual tinha um relacionamento bastante complexo: enquanto que ela não agüentava as pressões de Vladek, a necessidade de guardar “tralhas” (pois elas poderiam ser úteis um dia) e de gastar pouco, Vladek a considera uma mulher gastadeira que estava apenas atrás de seu dinheiro – o que se prova verdadeiro de certa forma, porque ela o abandona e “limpa” a conta bancária dos dois, apesar de voltar para cuidar de Vladek quando esse adoece. Com Art, Vladek age da mesma forma, afirmando que seu filho não sabe valorizar o dinheiro, o que faz com Art seja relativamente intolerante com suas obsessões e seus problemas, dificultando o relacionamento entre dois. Além disso, Spiegelman tem seus próprios fantasmas em relação à guerra: durante as confissões com sua namorada, Françoise, Art relata que, quando jovem, imaginava situações em que tinha que escolher qual de seus pais sobreviveria à guerra, bem como a respeito da maneira que enxergava seu irmão mais velho: enquanto Richieu era o retrato do filho perfeito, Art era o filho que errava, que decepcionava, vivendo à sombra da imagem de seu irmão. Tão difícil quanto sobreviver à guerra é sobreviver depois dela: as possibilidades, os traumas e as vitórias sempre retornam para assombrar os sobreviventes e seus descendentes.

Ler Maus é uma experiência interessante e dolorida. Tem seus momentos divertidos e engraçados, muitos por conta dos problemas de comunicação entre Vladek e Art, mas, possivelmente devido ao fato de retratar um dos momentos mais embaraçosos da humanidade, suscita uma nostalgia incômoda, pois as lembranças de Vladek, de certa forma, ultrapassam a barreira das páginas e passam a fazer parte do leitor. Quando ouvi falar de Maus pela primeira vez – uma história em quadrinhos ambientada na Segunda Guerra mundial, com ratos representando judeus e gatos representando alemães -, confesso que não tive muita vontade de conhecer; me pareceu pretensioso demais. Mas Spiegelman traduz as experiências de seu pai de maneira tocante, mas nada piegas, fazendo com que a história se torne interessante a cada virada de página.

2 comentários:

  1. A minha próxima aquisição com certeza... Há algum tempo quero ler.. não sou muito conhecedora de quadrinhos, venho da safra dos fãs de Persépolis, mas do que ando descobrindo venho gostando muito! =)
    www.twitter.com/flcamila

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  2. Maus é um livro sensacional. O encontrei por acaso há algum tempo e foi uma experiência valiosa.

    Eu só acho que às vezes o Holocausto é too overrated. Se você ler a História da Humanidade, vai ver que momentos tão ou mais cruéis sobram, sem exageros.

    Há uma propaganda muito forte feita sobre o Holocausto, que culminou com o Retorno à Palestina.

    Acho interessante ler sobre esses dois "contra-temas", pois tornam nossa visão da História mais rica.

    De novo. O Holocausto existiu? É claro! Mas talvez seja melhor a gente se inteirar sobre os outros Holocaustos da História. Aí talvez a gente compreenda porque foi preciso dramatizar um para que parássemos com os holocaustos...

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