quarta-feira, 12 de maio de 2010

Gibi: um termo em extinção?

por juniores rodrigues

Outro dia me dei conta que há anos não usava a palavra gibi para me referir às histórias em quadrinhos. E quando essa palavra saiu, saiu com um gosto estranho, quase arcaico, como se evocasse uma entidade há muito perdida ou esquecida. E realmente podemos observar que, atualmente, quem utiliza o termo está quase passando ou já passou da casa dos 30. O que eu noto (e aqui vai um dado nada comprovado, vindo somente de minhas parcas observações) é que, na maioria das vezes em que o termo é usado, há um tom pejorativo que o acompanha. Será isso uma manifestação apenas dos “mais velhos”? Talvez. Porque talvez a palavra gibi ainda esteja vinculada aos tempos em que essa modalidade era pensada ou considerada uma “arte menor”. O passar dos anos vem provando que as histórias em quadrinhos superaram esses preconceitos e se consolidaram como uma arte respeitável e mesmo inspiradora para outras artes, sobretudo no âmbito da cultura pop, tornando-se, além de objetos de fruição, ferramentas para o Ensino e “formação” do homem.

Voltando ao termo gibi, decidi ir mais a fundo em sua história e acabei descobrindo coisas interessantes. Uma delas é que se o termo soa preconceituoso nos dias de hoje isso tem a ver com sua origem mesmo. O caso da palavra gibi, a princípio, parece ter a ver com aquelas metonímias “inexplicáveis”, explicadas pelo sucesso de uma marca que se torna sinônimo de determinado produto, como é o caso de bombril, gillete e outros produtos.

A expansão do uso do termo ocorreu com o lançamento de revista Gibi, em 1939, pelo Grupo Globo. Na capa das edições, ao lado da destacada palavra Gibi, estava o desenho de um menino negro, também detentor da significação do termo, como podemos averiguar no Dicionário Houaiss:

gibi

Substantivo masculino

Regionalismo: Brasil. Uso: informal.

1 garoto negro; negrinho

2 publicação em quadrinhos, ger. infanto-juvenil

Etmologia: orig. obsc.

Segundo o professor Christian Arnold Leite, o termo gibi surgiu “com a revista Gibi, em 12 de abril de 1939, pelo editor e proprietário Roberto Marinho, através do jornal O Globo. O logotipo da revista era o menino negro no alto da capa falando, em algumas vezes, a palavra “Pelé”. Este termo, gibi, também é descrito como “um negro de traços grosseiros e rudes”.”

Interessante notar que mesmo a origem etimológica da palavra é dada como “obscura” pelo dicionário Houaiss, fato que torna ainda mais interessante essa cadeia de possíveis relações entre a origem e sentido (fim) imaginado e, sobretudo, aquele obtido, ainda que involuntariamente. A palavra que dá título a uma publicação da qual sua própria definição é excluída não tem também origem rastreável, tornando a exclusão uma ação permanente, suspendendo o excluído numa espécie de limbo, sem direito a réplica, como se, desde sempre, os gibis do nosso mundo estivessem com seu destino traçado, sem possibilidades de mudança.

Pondo a questão do preconceito racial e/nas HQs um pouco de lado (mas deixando aqui a entrevista do professor Christian Arnold Leite como exemplo de discussão da questão da representação dos negros em HQs), é interessante pensar o que o termo gibi inspirava e o porquê de seu uso para encabeçar uma publicação de quadrinhos. Por que associar a publicação de tiras de aventuras à imagem de um garoto negro? Podemos imaginar que nessa época (somente?) a imagem de um garoto negro como a que estampa a revista devia inspirar um mundo de possibilidades ligadas ao imaginário acerca dos negros e de suas especificidades e características culturais. Quais as expectativas em relação aos negros tão pouco tempo após a abolição? Qual a situação das famílias e das crianças negras de então? Qual seu lugar após as “limpezas” urbanas, como a de Pereira Passos no Rio de Janeiro? Onde o negro transita e a que(m) serve? Como reagir quando o Quilombo passa a ser favela?

Provavelmente, a representação de um menino negro devia bater com a de um “desocupado”, talvez um traquina, um espírito renegado, mas “livre”. E essa liberdade talvez fosse o que se buscava associar ao que era publicado, um mundo de aventuras, diferente daquele em que vivia o público leitor, que provavelmente não incluía meninos negros. Também cabe ressaltar que se hoje nos soa estranho essa denominação e suas implicações (o radar do politicamente correto ligado a cada esquina...), à época, pelo fato de se tratar de um produto, o uso do termo deve ter se dado em consonância com a mentalidade reinante, ou seja, era condizente com as expectativas e com a visão de mundo dos consumidores de então. Visão essa que colocava o negro como mero coadjuvante nas histórias de heróis (brancos), quando muito, pois não raro eles são representados como selvagens cuja única determinação é se alimentar de presas indefesas e dos heróis, quando esses são capturados em alguma armadilha. Por essa época, estava longe ainda o tímido protagonismo de personagens negros que vemos hoje. Indo por outra via, podemos até supor que o uso de um menino (negro) como chamariz de uma revista de quadrinhos buscasse alguma reminiscência do Menino Amarelo (Yellow Kid), considerada a primeira história em quadrinhos, apesar das controvérsias. Enfim, crianças cativam! E um menino negro e toda a carga de mistério que pode haver em seu entorno também pode ter um efeito catalisador nas intenções do leitor de viajar por esse universo que se desvenda a cada página.

Conjecturas à parte, a ambiguidade do termo prevaleceu e, por anos, o gibi foi visto como uma produção menor, como “coisa de criança”. A superação dessa condição parece ter abolido ou estar abolindo também a utilização do termo. Hoje, temos as histórias em quadrinhos sendo largamente publicadas no Brasil (não da forma ideal talvez), nos apropriamos de termos como mangá, graphic novel e mesmo arte sequencial (ara honrar o mestre Eisner) e no nível universitário seus conteúdos e suas metodologias são temas de inúmeros trabalhos acadêmicos, dissertações e teses.

Não serei ingênuo também de não “perceber” que as HQs se estabeleceram como item de mercado que, como todo produto bem sucedido, se expandiu, seguindo e criando demandas, sejam as de crianças, jovens ou adultos ou mesmo as dos pesquisadores. Talvez, não de modo direto, continuem não sendo voltadas, cultural e financeiramente, aos “gibis” da atualidade. E talvez os leitores de hoje ainda continuem sonhando com aquele mundo que, supõem-se, apenas os negrinhos desgarrados, com suas feições rudes, podem penetrar.

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Sobre a Revista Gibi e sua vidas, vale a pena conferir:

Gibi Semanal

Histórias que não estavam no gibi

6 comentários:

  1. engraçado é que hoje eu tava ouvindo uma música do nando reis, em que ele dizia

    "Pensei que era assim
    Nos filmes, nas telenovelas
    Mas eu gostava é de gibi"

    e eu pensei "nossa, quanto tempo eu não ouvia essa palavra!"

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  2. Acredito que “HQ” ainda seja um termo muito especializado, é uma abreviação do óbvio, fora do meio consumidor especializado acaba sendo raro encontrar uma menção, não vejo problema em falar “gibi”, já que é um termo cultural, serve para representar a mídia em quadrinhos.

    Se “gibi” representou uma posição de “arte-menor”, é porque aquela indústria se posicionou da mesma forma no filão de entretenimento, mas que não seja por isso, já que lá fora, o termo é “Comics Books”, “Comics”, cômico, menos infundado em nossas diferenças raciais, mas igualmente pejorativo.

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  3. "Indo por outra via, podemos até supor que o uso de um menino (negro) como chamariz de uma revista de quadrinhos buscasse alguma reminiscência do Menino Amarelo (Yellow Kid), considerada a primeira história em quadrinhos, apesar das controvérsias. "

    Haha, também penso nisso quando leio sobre a origem dos quadrinhos. Seu texto foi bem completo e virou uma ótima referência para esclarecer o termo.

    É engraçado como quando pensamos "Gibi" na hora vem Turma da Mônica e afins na cabeça. E pior.. relacionamos isso com algo ruim.

    Eu mesmo tremia nas bases qdo falavam sobre um hq independente q eu fazia e o chamavam de gibi... pura bobagem, mas o termo infelizmente adiquiriu uma idéia infantil q por sua vez se costuma a menosprezar x.x. (pura bobagem ²).

    Enfim, mas uma postagem legal do blog :)

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  4. parabéns!, juniores
    ótimo texto

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  5. eba vou ganhar dessa vez kkk

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  6. Curioso... Nunca pensei que gibis, mangás e afins fossem "sumir", entrar em extinção, mas talvez seus "objetivos" sim mudem de foco. Veja-se, por exemplo, neste link que eu estava lendo hoje (http://www.novatec.com.br/manga.php) e você verá o uso de mangás em áreas de ensino de Mecânica Clássica (Física), Banco de Dados, Estatística (esse me interessou!), Eletricidade, Cálculo (Diferencial e Integral) e Biologia Molecular! Não é DUCA????? Gostei do artigo, chefe!

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